Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Alguns de meus leitores e amigos sabem que sou espírita, porém não me é de praxe misturar estações e trazer à baila minhas ideias no campo da espiritualidade e da religiosidade quando o espaço se destina à discussão da política ou vice-versa.
Por um lado, porque aqui procuro escrever como brasileiro, para leitores de todas as crenças e descrenças; os problemas pertinentes aos reclames liberais da nossa pátria, à busca de prosperidade, segurança, liberdade e dignidade em nosso torrão, podem – ao menos devem – ser os mesmos, sejamos católicos ou ateus. Por outro, porque os espíritas somos recomendados de maneira explícita por nosso fundador, o francês oitocentista Allan Kardec, a afastar de nossas discussões de ordem doutrinária e de nossas reuniões particulares qualquer questão polêmica ou “irritante”, em especial aquelas relativas à política ideológico-partidária e a controvérsias religiosas.
Circunstâncias excepcionais, contudo, ensejam atitudes excepcionais. Eis que nosso amigo Rodrigo Constantino, colunista da Gazeta do Povo, replica um vídeo do médium baiano Divaldo Pereira Franco, autor de imensa gama de livros psicografados e fundador de uma obra social chamada Mansão do Caminho, em que este expressa, com firmeza, posições de caráter político-social. Frise-se: estava ele em um evento em que se podia fazer perguntas, e um jovem no auditório perguntou sua opinião sobre a ideologia de gênero.
O médium resumiu que ela marca “um momento de alucinação psicológica da sociedade”. Atribuiu ao marxismo a tese de que a escravidão moral de um povo é um caminho mais efetivo que a escravidão meramente econômica, descrevendo, fundamentalmente, a famigerada subversão cultural gramsciana. Elogiou a atuação do juiz Sérgio Moro e da “República de Curitiba” no “desnudar da hipocrisia”, deixando claro que o juiz não “provocou escândalo” algum e sim o desvelou. A ideologia de gênero seria mais um instrumento de confusão, difundido em cartilhas para convulsionar as mentes infantis; é preciso fiscalizar os governantes para combater tal imposição, de uma “imoralidade ímpar”, tal como o aborto, que as mesmas forças políticas tentam tornar inteiramente legal.
Divaldo respondeu a partir de suas próprias ideias. Não há que dizer, fique claro, que, porque ele disse alguma coisa, esta é a visão do Espiritismo. Pessoalmente, concordo, em linhas gerais, com o posicionamento de Divaldo – e já discordei dele muitas vezes, mais uma razão para não ter qualquer constrangimento em fazer coro a sua opinião neste momento, sem receios de ser taxado de “idólatra” ou subserviente.
Lamentavelmente, a esquerda pedante e ciosa de seu suposto monopólio da virtude está por toda parte e o movimento espírita não é exceção, não importa quantas contradições e paradoxos precisem ser desprezados para isso. Depois que o vídeo de Divaldo se popularizou, associações e personalidades que, desconsiderando o conselho de Kardec, insistem já há algum tempo em trazer seus apreços político-partidários para a ambiência espírita como se, em tal aspecto, fossem a voz soberana da razão e da justiça, se mobilizaram para demonstrar sua repulsa às suas declarações. Ignorarei aqui a saraivada de insultos que pipocaram em redes sociais. Registro apenas que, contra a opinião de um único homem expressa quando perguntado, autointitulados “espíritas progressistas” redigiram em conjunto, com assinatura coletiva, um manifesto inteiro apenas para desdizê-lo.
A iniciativa tem envolvimento da pedagoga Dora Incontri, que coordena a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e redigiu um texto de sua própria lavra sobre o assunto, onde diz que Divaldo “está exercendo sua imensa influência no movimento espírita para fortalecer posições retrógradas, anti-humanitárias e o faz sem qualquer argumentação”. Trata-se da mesma pessoa e da mesma instituição que endossaram, não muito tempo atrás, um Manifesto Espíritas em Defesa da Democracia, nada mais que um panfleto mal disfarçado para denunciar o quanto a Operação Lava Jato representava um “golpe à democracia”, de vez que denunciava a “imprensa” e o “Judiciário” como os fatores de maior preocupação diante da prisão de criminosos.
O manifesto atual deixa esse caráter ainda mais claro. Diante da propositada confusão entre o Espiritismo e o notório partidarismo dos abaixo-assinados do manifesto, do ataque despropositado à opinião pessoal expressa livremente pelo cidadão Divaldo Franco e do tom generalista assumido pelo texto, sinto-me compelido a pôr os “pingos nos is” para que os não-espíritas não acreditem que a opinião de Divaldo é apenas um evento isolado e que todos os espíritas concordam com o que ali está expresso. Quando alguns resolvem “dar a César o que é de Deus”, para fazer uso de uma analogia evangélica, faz-se necessário rebater seus termos para promover a devolução.
O manifesto começa criticando superficialidades, como a referência à “República de Curitiba” – para os autores, uma afronta à “República brasileira”. Não perderei tempo com tamanha tolice. Diz o texto que “Divaldo assume uma postura claramente partidária, contrária ao PT”, fazendo uma “crítica rasa” e “chamando o governo desse partido de marxista e assumindo um discurso próprio da polarização extremista, manipulada e sem consistência”.
Ele, efetivamente, disse o que pensa: apontou a presença de derivações do divisionismo e do espírito de cizânia próprios do marxismo na prática política desenvolvida no Brasil na última década. Não foi partidária a nota dos “espíritas pela democracia” quando elegeram a Justiça e a imprensa como vilãs? A diferença é que o é de maneira mais hipócrita e dissimulada. Não é partidária – e irresponsável – a parte do manifesto em que os abaixo-assinados dizem que Moro é questionável “dadas as críticas de grandes juristas nacionais e internacionais à parcialidade desse juiz e a seus atos de ilegalidade, que feriram a Constituição, e às notícias que correm na mídia de seu conluio com determinados segmentos e partidos”? “Notícias que correm na mídia”? Quais as provas que os abaixo-assinados esquerdistas oferecem para sustentar suas injúrias? Se nenhuma, que pensem duzentas vezes antes de acusar as afirmações transparentes e óbvias de Divaldo de serem mero “partidarismo”.
O texto diz também que não existe “ideologia de gênero”, mas sim “uma área de pesquisa no mundo que se chama ‘Estudos de Gênero’ – que teve influência de Michel Foucault, Simone de Beauvoir e Judith Butler” – todos, é evidente, autores de esquerda. É muito interessante que “estudos” estimulem deformações na língua para “neutralizar” o gênero das palavras, principalmente entre frequentadores do ambiente universitário; a atitude de pais de fazerem crianças acreditarem, desde a tenra idade, que não são “masculinas” ou “femininas” e sim entidades fluidas à espera de definição; a tentativa de estabelecer cartilhas e discussões em escolas, tudo isso com base em “estudos”. São “estudos” que impõem a crença em que, se eu me julgar uma mulher, eu sou uma “mulher” (e, se sou o que quero e sinto e não o que a biologia impõe, esse conceito “mulher” não tem qualquer base objetiva para existir, logo o que significa eu “ser mulher”?). “Podemos concordar com algumas dessas conclusões, discordar de outras, deixar em suspenso outras tantas”, dizem ainda. Ora, se são “estudos” com os quais se pode discutir, por que tanto ativismo em fazê-los descer goela abaixo da sociedade e submeter crianças às suas consequências ainda mal deduzidas?
“Divaldo revela também completo desconhecimento dessa área de estudos de gênero, alinhando-a ao marxismo e ao comunismo” porque “as grandes lideranças desses estudos estão nos Estados Unidos e na Europa”. Será que os abaixo-assinados ouviram falar no italiano Antônio Gramsci? Na Escola de Frankfurt? Em Herbert Marcuse? Será que acreditam que “marxismo” e “comunismo” só se podem referir a qualquer coisa que tenha acontecido na União Soviética, em Cuba ou na Coreia do Norte? Será que sabem que o próprio Marx, ainda que seu sistema tivesse base mais econômica, já deixava claro que a família e a cultura cristã eram obstáculos à sua doutrina e a transferência contemporânea do seu espírito belicista ao plano cultural, às subjetividades e “minorias” é uma elaboração dessa brecha original? Acho que quem precisa saber melhor do que está falando nesse caso não é bem o Divaldo…
O maior problema, porém, e encerro com ele, é a conclusão do manifesto. Para os abaixo-assinados, ao opinar, os espíritas devem – DEVEM! – “preferencialmente, defender os direitos dos mais fragilizados socialmente, no caso, as mulheres, as crianças, os membros da comunidade LGBT+”, além “dos negros e negras, as juventudes periféricas e as pessoas com deficiência” e não devem “alimentar discursos de ódio partidário e nem medidas punitivas”.
Desafio esses esquerdistas a demonstrar a pertinência de tal observação, já que não vi Divaldo realizar qualquer afronta a esses grupos e pessoas. Eles sim fizeram ilações sem base sobre a pessoa do juiz Sérgio Moro. Eles sim sentenciam a divergência à qualidade de obscurantismo e nos querem fazer passar por aberrações morais. Já o Espiritismo, este diz que todos, perante Deus, têm o mesmo valor ontológico. Sendo assim, não há que olhar “preferencialmente” para os “direitos” de fulanos ou sicranos.
Não podemos permitir que todos os espaços sejam prostituídos aos interesses mesquinhos de ideólogos de plantão. Já aqueles que se consideram os “progressistas”, senhores do bem e do mal, seria de bom tom que demonstrassem mais senso de proporção e justiça, não fizessem ataques sem base e atestassem por atos aquilo de que se ufanam.